quarta-feira, 9 de março de 2011

Antropólogo enfatiza necessidade de combater corrupção policial

Como coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio (1999/2000) e secretário nacional de Segurança Pública (2003), o antropólogo Luiz Eduardo Soares não conseguiu implantar a maior parte de suas ideias, mas nunca deixou de expressá-las, contrariando os coros de unanimidade.

Ele, por exemplo, enxerga "uma enorme ilusão" na oposição entre bem (polícias) e mal (tráfico) pregada pelo poder público e difundida pela mídia.

Soares apoia operações de repressão ao tráfico de drogas, mas acredita que, se a corrupção policial -que tem nas milícias sua forma mais organizada- não for enfrentada, as conquistas do complexo do Alemão agora celebradas se tornarão frustrações mais adiante.

Em entrevista publicada nesta quinta-feira (2) pelo jornal Folha de S.Paulo, Soares avalia que o atual sistema de tráfico de drogas no Rio anda mal das pernas. "O negócio de drogas vai muito bem, obrigado, mas não o tráfico na sua forma que envolve, no Rio, controle territorial, organização de grupos armados, pagamento a policiais, conflito com facções, num contexto político crescentemente antagônico e com pressões sobre os governos, pois a consciência pública vai amadurecendo e se tornando mais refratária a conviver com o ilegal nessa magnitude", diz.

Ele avalia como positiva a recente operação policial em morros do Rio de Janeiro, mas acredita que a primeira medida fundamental é fazer com que a polícia pare de participar do tráfico. "A parceria entre o tráfico e segmentos policiais corruptos, que vendem armas, alugam Caveirão, ganham percentuais da venda da droga, tem que ser objeto da preocupação prioritária", defende Soares.

Ao mesmo tempo, Soares condena o "desejo de vingança" expresso por setores da sociedade que pedem para a polícia agira com mais truculência contra os bandidos. "Eu costumo apresentar um argumento a uma senhora ou a um senhor de classe média preocupado com a segurança de sua família e que diz desejar "que acabem logo com esses traficantes". Há outros criminosos além deles, e esses traficantes o são com apoio dos que deveriam cumprir a lei. Então, o mal atravessa os dois lados, não existe essa polaridade [entre bem e mal], e esse é o problema. Quando a autoridade dá ao policial na ponta liberdade para matar, dá-lhe também, indiretamente, a liberdade de não fazê-lo", diz Soares.

Ele cita o caso do conflito em São Conrado e a chacina de Vigário Geral [em 1993, 21 inocentes foram mortos por policiais que vingavam colegas assassinados pelo tráfico], como exemplos de reação desmedida e da relação promíscua da polícia com o crime organizado.

Segundo ele, o conflito em São Conrado [em 21 de junho passado], não se deu em torno de uma operação policial planejada com inteligência, mas foi fruto de uma redefinição do contrato: inflação, mudança de preço, cobrança de sobrepreço. Os sócios se desentenderam. "Em geral, os conflitos são desse tipo", aexplica.

Soares ataca também as milícias, que ele aponta como "o quarto estágio da economia da corrupção". "É quando já há uma organização superior: 'Nós não precisamos ser apenas sócios, podemos ser os protagonistas. Vamos buscar lucros participando de forma criminosa de tudo o que puder oferecer algum potencial econômico na vida da comunidade que estará sob nosso domínio, sob nosso terror', relata Soares, reproduzindo o que se passa na cabeça dos milicianos.

"Muita gente diz que eles, pelo menos, se opõem ao tráfico. Não é verdade. Esperam que a polícia enfrente o tráfico e, se isso não acontece, fazem negócios com os traficantes. São muito mais fortes, numerosos, têm mais capacidade de organização, o rendimento é superior, têm visão política. Outro ponto é a segurança privada. É uma das origens das milícias. Os salários dos policiais são insuficientes. O sujeito tem que complementar a renda. Vai buscar, como nós fazemos, na área de sua especialidade, no caso, a segurança", relata Soares.

O ex-secretário de Segurança acusa o poder público de conivência com as milícias e afirma que, agindo assim, "o Estado fica com um pé na legalidade e um pé na ilegalidade".

Sobre a cobertura da mídia brasileira em relação à violência, Soares diz que há uma "enorme ilusão". "Não quero me arrogar o papel do único que enxerga a realidade, pelo amor de Deus. Mas é assustador que pessoas tão inteligentes e bem intencionadas se iludam com a fábula de que o bem venceu o mal. Esse mal só existiu até esse momento porque foi alimentado por isso que chamamos de bem. E, se agora esse mal é afastado, esse bem que é parte do mal parece triunfante. Vamos nos surpreender sendo apunhalados pelas costas, porque parte dos heróis são os que estão nos condenando à insegurança, levando armas e drogas para as favelas".

Soares conclui a entrevista alertando para o risco de as tropas do Exército que ficarão no (morro do) Alemão serem contaminadas pelo tráfico. "A contaminação é uma preocupação constante do próprio Exército, seja por exemplos internacionais, como o do México, seja pela experiência de roubos de armas, com cumplicidade de gente da instituição. Seja também pela promiscuidade, sabendo-se que alguns saíram do Exército e foram recrutados pelo tráfico. Por conta dessa preocupação, o Exército fala em rodízio", conclui.

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